Teatro do Absurdo – Todos os que caem

 

Samuel Beckett escreveu uma das mais preciosas peças do teatro do absurdo: preciosa por ter uma grande dramaturgia, mais preciosa ainda por ser precisa em deixar ao final uma sensação no espectador de um ‘soco na boca do estômago’, um vazio e uma sensação que não há justiça, verdade ou ética que sobreviva a degeneração da condição humana. A peça se chama ‘Todos os que caem’, um texto clássico do Teatro do Absurdo.

A peça foi escrita para ser uma novela de rádio, transmitida pela BBC de Londres, em 1956. É muito agradável o relato da história e, inicialmente, não parece ter nada de absurda, aliás, este foi o grande talento de Beckett: nunca foi afetado ao ponto de escrever coisas enigmáticas ou incompreensíveis em seu teatro do absurdo, por certo compreendia que o comportamento dos indivíduos, com suas mediocridades, vilanias, incoerências e fragilidades, já contém suficiente descenso e hipocrisia que confere com toda a naturalidade a condição de absurdo. Mas vamos a história (sugiro que leiam ou assistam a peça, é um texto encenado por muitos grupos e companhias, eu vi uma montagem do André Pink que fazia toda a sonoplastia ao vivo, uma das coisas mais lindas que vi no teatro).

Maddy Rooney, ou a Sra. Rooney, é uma senhora idosa e muito graciosa, destas que falam o tempo todo e parecem estar realmente interessadas por qualquer conversa, tipicamente solitária, sempre se queixando do “reumatismo e por não ter filhos”. Num sábado qualquer, segue por uma estrada rural para encontrar o seu velho e amado marido, Dan, que retorna de viagem. Ela já lhe deu uma gravata de aniversário, mas quer fazer uma surpresa e encontrá-lo na estação de trem.

Ao chegar na estação, a Sra. Rooney continua a falar de coisas triviais, banalidades típicas de quem está jogando conversa fora, é uma senhora simpática e muito divertida. O trem está atrasado, demora. Maddy fica preocupada. Quando chega, ela não encontra o Sr. Dan, apenas encontra Jerry, um garoto que sempre recebe uns trocados para levar o Sr. Dan, que é cego, até o táxi. Finalmente, Maddy e Jerry encontram Dan que está estranho e transtornado, irritado e diferente, grosseiro com Maddy Rooney por não ter dispensado o garoto Jerry, já que veio buscá-lo. Jerry tenta ajudá-lo e, subitamente, uma pequena bola de criança, cai do bolso de Dan. Maddy pergunta: o que é aquilo? Dan, resmunga e diz “nada, é só algo que trago comigo”. Ela insiste em saber o que aconteceu com o trem e o que há com Dan. Ele acaba por dizer que está cansado, então é incomodado por crianças, pelos gêmeos Linch, filhos de seu vizinho, que sempre insistem em fustigá-lo e molestá-lo, tem até que corrê-los com a bengala (lembra, então, da vez que os gêmeos jogaram lama nos dois: Maddy e Dan).

Dan não entende porque as crianças não respeitam os mais velhos. Dan chega a dizer para Maddy “você nunca teve vontade de matar uma criança? Não se conter e sufocá-la com as próprias mãos? ”.

Os dois seguem para casa, ansiosos por se acomodarem tranquilamente e Dan imagina estar bem sentado, escutando a agradável voz de Maddy Rooney, que costuma ler os livros em voz alta por ele ser cego.

Maddy insiste em saber de Jerry o motivo do atraso do trem. Dan pede para que deixe o garoto ir em paz, mas Maddy, numa última tentativa, escuta de Jerry que o trem teve que parar no caminho, pois uma criança caiu do trem, não se sabe como, e foi esmagada pelas rodas. Se escutam os gemidos de Dan ao fundo, depois que Jerry conta o que aconteceu com a criança.

Ao som dos passos de Jerry indo embora, os dois seguem o caminho para casa, a chuva cai fina e lenta, Maddy silencia, a plateia também, o pano cai, todos percebem quem matou a criança, mas a plateia sai muda.

Aquele casal tão inocente, solitário, que só tem um ao outro, que sofrem “bulling” praticado pelas crianças, tem culpa? Por que Maddy Rooney não denuncia Dan? Há provas contra Dan? Sim, a bola da criança, o atraso… mas todos os sentimentos, crenças, indignações e indulgências surgem na plateia. Um absurdo. A vida é absurda, aquele pobre cego é um assassino de uma criança e a simpática Sra. Rooney, que parece uma vozinha de comercial de plano de saúde, sua cúmplice? Naquele momento todos nós caímos, pois é muito difícil dar uma resposta, mesmo ela sendo fato. É muito difícil julgar e quando fazemos de maneira arbitrária, um dia, saberemos que condenamos a nós mesmos. É difícil julgar quando o caso envolve dois velhinhos que sofrem abusos e cometem um crime, fica compreensível uma natural tolerância, mas o que dizer do absurdo que estamos vivendo ao aceitar os crimes de velhas raposas políticas (mil perdões a espécie das raposas)  que nada fazem que mereça pena, tolerância ou crédito?

Todos os dias nós caímos atônitos, todos nós temos culpa por ter gerado uma classe política tão distante da realidade, ignorante, insensível, desprovida de qualquer conceito ético, que esquece que a boa política é olhar para o horizonte coletivo: quanto mais grandioso é um político maior é sua capacidade de olhar para mais longe de si, de buscar o que é melhor para o mundo, o país, a comunidade. Um político não devia tomar posições para si, seus filhos, esposas, famílias, sobrinhos, comparsas, etc. Eles foram eleitos para legislarem para o todo. Essa leitura e prática mesquinha condiciona e garante que todas as decisões destes “líderes” serão tomadas a partir dos interesses próximos, particulares por uma classe política (a maioria) aproveitadora e prevaricadora.

Boa parte do que vivemos ou presenciamos em nossa existência tem algo de absurdo, grotesco e inaceitável. Mas aceitamos… por quê? Interesses, como diria um antigo político, os interesses… sempre há uma parte da sociedade que tem interesses diretos no absurdo destes desmandos atuais, e por isso aceitam tranquilamente. Mas isto não é o pior absurdo… o pior absurdo é ver a maioria, na qual me enquadro, que não tem interesse neste pardieiro que virou a política que, mesmo lesada, permanece calada, conivente, escutando as desculpas e posturas mais inadequadas, vazias, desprovidas de respeito mínimo, muitas delas mentirosas e tão cínicas quanto o sorriso dos vilões. Enquanto aceitarmos e assistirmos o desfile imoral dos maus políticos, como se fosse uma obra de ficção, um teatro do absurdo, todos nós cairemos. Todos.

Um dia após o outro, o tempo faz algo surgir de positivo de qualquer experiência. Isto me dá a esperança de que conhecer e desvelar a sordidez, subserviência e hipocrisia de todos nós brasileiros (independente das bandeiras) seja o primeiro passo para, quem sabe, um dia, de fato, começarmos a mudar este País.

Autor do post: Flávio Guerrico

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